Exercícios sobre a crônica
1- (Enem – 2008)
São Paulo vai se recensear. O governo quer saber quantas pessoas governa. A indagação atingirá a fauna e a flora domesticadas. Bois, mulheres e algodoeiros serão reduzidos a números e invertidos em estatísticas. O homem do censo entrará pelos bangalôs, pelas pensões, pelas casas de barro e de cimento armado, pelo sobradinho e pelo apartamento, pelo cortiço e pelo hotel, perguntando:
— Quantos são aqui?
Pergunta triste, de resto. Um homem dirá:
— Aqui havia mulheres e criancinhas. Agora, felizmente, só há pulgas e ratos.
E outro:
— Amigo, tenho aqui esta mulher, este papagaio, esta sogra e algumas baratas. Tome nota dos seus nomes, se quiser. Querendo levar todos, é favor... (...)
E outro:
— Dois, cidadão, somos dois. Naturalmente o sr. não a vê. Mas ela está aqui, está, está! A sua saudade jamais sairá de meu quarto e de meu peito!
(Rubem Braga. Para gostar de ler. v. 3. São Paulo: Ática, 1998, p. 32-3 (fragmento).)
O fragmento acima, em que há referência a um fato sócio-histórico — o recenseamento —, apresenta característica marcante do gênero crônica ao:
a) expressar o tema de forma abstrata, evocando imagens e buscando apresentar a ideia de uma coisa por meio de outra.
b) manter-se fiel aos acontecimentos, retratando os personagens em um só tempo e um só espaço.
c) contar história centrada na solução de um enigma, construindo os personagens psicologicamente e revelando-os pouco a pouco.
d) evocar, de maneira satírica, a vida na cidade, visando transmitir ensinamentos práticos do cotidiano, para manter as pessoas informadas.
e) valer-se de tema do cotidiano como ponto de partida para a construção de texto que recebe tratamento estético.
Infere-se como alternativa adequada ao enunciado da questão a letra “E”, visto se tratar de um gênero que capta flagrantes da vida real e que, diante da habilidade do escritor, torna-se relatado de forma poética, podendo se apresentar desde a forma cômica até àquele texto que nos instiga a uma reflexão mais aprofundada.
Leia, em primeira instância, o que nos diz o crítico literário Antônio Cândido acerca do gênero “crônica”:
A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos, e poetas. Nem se pensariam em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.
“Graças a Deus” – seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós.
Antônio Cândido
Tendo em vista os conhecimentos de que dispõe a respeito de tal gênero, explicite suas considerações sobre o fragmento acima, levando em consideração as características que demarcam a modalidade em questão.
A afirmação desse renomado crítico parece relatar de forma contundente acerca dos traços que demarcam o gênero “crônica”, haja vista não se tratar de um romance, nem de um auto, tampouco de uma epopeia, mas sim de um texto curto, contendo poucos personagens, constituído de tempo e espaços limitados que, sobretudo, capta flagrantes da vida real, pitorescos até. Dessa forma, ao afirmar que tal modalidade se situa “perto de nós”, ele quer justamente justificar a simplicidade (vista no bom sentido) desse tipo de texto, acessível e compreensível por qualquer leitor.
Explicite seus conhecimentos acerca da crônica argumentativa.
Tendo em vista que a maioria das crônicas, geralmente veiculadas em jornais e revistas, limita-se a narrar de forma poética acerca de um acontecimento do cotidiano, a crônica argumentativa se mostra semelhante àqueles gêneros de cunho argumentativo, uma vez que apresenta uma tese, ou seja, uma ideia passível de discussão, quase sempre polêmica, e defende-a por meio de argumentos plausíveis. Dessa forma, constata-se que tal modalidade permite, também, a exposição das ideias promulgadas pelo emissor acerca de determinado assunto.
O texto que segue (fragmentos) é de autoria de Mário Prata. Lendo-o, procure responder ao que se pede:
Na fila da liberdade
[...]
Pois foi numa dessas filas que o fato se deu.
Era uma bela fila, de umas dez pessoas. E em supermercado, com aqueles carrinhos lotados, a gente ali olhando a mocinha tirar latinha por latinha, rolo por rolo de papel higiênico, aquela coisa que não tem fim mesmo. E naquela fila tinha um garotinho de uns dez anos, que existe apenas uma palavra para definir a figurinha: um pentelho. Como muito bem define o Houaiss: “pessoa que exaspera com sua presença, que importuna, que não dá paz aos outros”.
Pois ali estava o pentelhinho no auge de sua pentelhação. Quanto mais demorava, mais ele se aprimorava. E a mãe, ao lado, impassível. Chegou uma hora que o garoto começou a mexer nas compras dos outros. Tirar leite condensado de um carrinho e colocar no outro. Gritava, ria, dava piruetas. Era o reizinho da fila. E a mãe, não era com ela.
Na fila ao lado (aquela de velhos, deficientes e grávidas), tinha um casal de velhinhos. Mas velhinhos mesmo, de mãos dadas. Ali, pelos oitenta anos. A velhinha, não aguentando mais a situação, resolveu tomar as dores de todos e foi falar com a mãe. Que ela desse um jeito no garoto, que ela tomasse uma providência. No que a mãe, de alto e bom tom:
-Educo meu filho assim, minha senhora. Com liberdade, sem repressão. Meu filho é livre e feliz. É assim que se deve educar as crianças hoje em dia.
A velhinha ainda ameaçou dizer alguma coisa, mas se sentiu antiga, ultrapassada. Voltou para a sua fila. Só que não encontrou o seu marido, que havia sumido.
Não demorou muito e voltou o marido com um galão de água de cinco litros e, calmamente, se aproximou da mãe do pentelho, abriu e entornou tudo na cabeça da mulher.
-O que é isso, meu senhor?
O velhinho colocou o vasilhame (que palavra antiga) no seu carrinho e enquanto a mulher esbravejava e o pentelho morria de rir, disse bem alto:
-Também fui educado com liberdade!!!
Foi ovacionado.
Trata-se de uma narrativa, sem dúvida. Contudo, uma narrativa diferente das convencionais – o que nos atesta se tratar de uma crônica. Dessa forma, em se tratando do narrador, procure ressaltar o que compreendeu acerca desse importante elemento referente à modalidade em estudo:
Partindo do pressuposto de que numa crônica pode se constatar tanto a presença de um narrador-observador quanto de um narrador-personagem, ao lermos os presentes fragmentos, constatamos que se trata de alguém que observa os fatos de longe e os relata para o leitor. Nesse sentido, trata-se de um narrador-observador, até mesmo pela terminação das formas verbais.